terça-feira, 21 de setembro de 2010

os loucos estão certos



Moves os lábios. Não te ouço, apenas vejo os teus lábios que se agitam numa conversa surda. Não te ouço. Não é suposto ouvir-te. Moves os lábios e encolhes os ombros, talvez duvidando do que dizes, com o olhar fito no horizonte, no teu horizonte.

O verde dos canteiros da praça parece fazer-te dizer que sim, depois da ligeira hesitação de há pouco. A velocidade dos teus pensamentos levou-te a deixar as hesitações e as periclitantes dúvidas.

Afirmas as tuas certezas enquanto o cigarro efectua rápidas viagens até aos teus lábios que se movem apesar da sua mudez. Fitas o horizonte, o teu horizonte. Fitas a praça que se espraia à frente de uma igreja imensa e majestosa.

Vejo-te sorrir. Os dizes felicidade mas eu leio-o nos teus lábios que sorriem perante as tropelias de uma criança. O sol banha a praça, os canteiros, os sinos inertes e até os teus lábios mudos. O sol impõe-se lá no alto, esquecendo-se apenas da fachada da fria igreja. Os teus lábios movem-se mas não te escuto, não te ouço mas sei que falas. Falas sem falar e isso é suficiente para mim.

Percebo-te. Consigo até compreender-te melhor do que os gritos das crianças que delimitam os canteiros. Escuto os seus lábios e nada. Escuto as suas palavras e nada. Nenhum som chega até mim, a não ser as tuas palavras surdas, vindas dos teus lábios que se mexem sem falar.

Escuto-te sem te ouvir e ao teu cigarro que, num vai e vem desenfriado, se vai esgotando, queimando, desaparecendo, desvanecendo... que, nitidamente, se vai esfumando enquanto os teus lábios continuam, como um pêndulo irrequieto, o seu movimento incessante e surdo, mas facilmente compreensível.

escrito inicialmente em guardanapos de papel, a 16 de agosto de 2010

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

ontem e hoje


Ontem já foi há muito tempo. Hoje os dias são maiores e com menos tempo para extrair deles todo o sumo de que precisamos. Ontem houve passeios e sorrisos e a responsabilidade tinha ficado fechada em casa... mas...

há sempre um mas nestas histórias...

ao chegar a casa,
quando ontem passou a ser hoje, ali estava ela, impassível e irresistível. Irreversível. Hoje não é, seguramente, ontem mas sei que amanhã o sol vai despontar de novo, o calor que dele irradiar vai aquecer-nos e outros barcos acabarão por cruzar-se connosco.

Hoje a questão terá de ficar adiada. Ainda não foi hoje que o barco aportou. Talvez devêssemos sair desta paragem de autocarros, não creio que ele vá chegar a nós se nos mantivermos por aqui.

Vem, o sol espera-nos...